Notícia publicada ontem dá conta de que estudantes universitários agarraram e montaram moças obesas durante jogos interfaculdades. Chamaram isso de "rodeio de gordas". A universidade, na pessoa do reitor, disse que vai estudar medidas disciplinares mas não abrirá um "processo inquisitório". Outra notícia diz que a promotoria de Araraquara vai apurar o acontecido.
É um sinal de que esse ódio contra os gordos não é miragem. Ódio do diferente que ameaça a identidade não é coisa nova. Outra raça, outro credo, outra prática sexual. Mas por que agora o gordo ameaça? Vou direto ao que me parece ser o ponto: hoje o poder "passa" pelo corpo, dizia Foucault. Não é que as práticas de poder terminam por moldar o corpo e as práticas corporais, mas que o poder incide diretamente sobre o corpo.
Hoje, digamos nós, também da disciplina caracterizada por Foucault se prescinde. Se a escola, a prisão e a fábrica escapam da órbita do Estado para disciplinar por meio de regulamentos todos os atos físicos - quantas horas se dorme, que horas se acorda, portanto o quanto se sonha e lembra dos sonhos, etc., etc. - hoje-hoje a sociedade de consumo do novo trabalho deixa que os sujeitos se tornem também os disciplinadores de si (pois já não viraram os empreendedores da própria vida?).
Não é preciso ter consciência. Aliás, quanto menos consciência, melhor. Não é bom refletir. O poder incide diretamente sobre o corpo significa que ele prescinde também das palavras em que a regra e a resistência se formulariam. Basta a palavra-slogan.
Não é preciso haver imagens no sentido forte, ou seja, imagens de algo. Aliás, é preciso justamente que os sujeitos creiam nas imagens tanto mais fortemente quanto menos elas guardem relação com algo real. Donde as imagens-leis, enunciadas pelo photoshop.
A crítica fundada na psicanálise explica que há uma regressão geral ao imaginário. Como se o domínio simbólico, da lei e da palavra, tivesse deixado de existir. Evidentemente, não deixou. Nós é que o negamos, sabendo que ele existe. Nós é que achamos que pode haver lei e, ao mesmo tempo, aquilo que a infringe, mas sem punição: o rapaz que organizou o rodeio o chama de "brincadeira". O que ele fez, ele sabe que é errado. Deixa de ser se se põe no espaço onde não vale a lei porque não se faz nada a sério. Ali, violência passa a chamar brincadeira.
No debate mundial esse regime de vale-mas-não-vale chama cinismo ou perversão. No Brasil, o país da escravatura gentil e assassina, tudo isso caiu como uma luva. É o país do futuro. A vanguarda da barbárie.
Mas voltando à big picture: uma indústria alimentícia fundada num regime fundiário concentrador impõe à população mundial um regime alimentar que leva à obesidade. Não é à toa que o relatório das Nações Unidas sobre a epidemia de obesidade levou, desde o começo da década, a uma pesquisa conjunta entre a parte da organização que cuida de saúde e aquela que cuida da agricultura. É óbvio, mas sempre esquecido, que nossa alimentação é um resultado direto da organização global da agricultura.
Uma palavra sobre esse "impõe" do parágrafo anterior: parece que os indivíduos escolhem comer pizza e não comer salada e que, portanto, se são gordos é porque escolhem sê-lo. Concordo que cada vez que alguém põe algo no prato há escolha, mas é uma ingenuidade sem tamanho achar que essa escolha é livre, que a pizza e a salada têm diante do sujeito as mesmas chances. E não estou falando do instinto que nos faz preferir gordura - um dispositivo biológico que não tem a última, mas a primeira palavra.
Estou falando do contexto da escolha que envolve um sujeito exausto, frustrado, entediado, sedentário, emburrecido, deprimido - nenhuma dessas coisas por escolha própria - que tem de escolher entre uma pizza que ecoa todas essas emoções, vem numa caixa colorida e não implica nenhum trabalho e nenhum contato com a matéria viva, e um monte de ingredientes que têm de ser escolhidos, comprados com frequência, lavados, misturados... ou seja entre uma comida que harmoniza com o tédio, o ódio, o amortecimento e regressão da sensibilidade e outra que exige algo de nós, escolha, trabalho, refinamento do paladar, paz mental... e não dá o prazer imediato e fácil da gordura.
E nem é preciso na verdade que o sujeito esteja exausto etc., basta que seus pais tenham estado para que se forme um hábito alimentar difícil de mudar. E se todos comem assim à sua volta, como é que você vai mudar? De onde vai tirar forças pra fazer diferente na sociedade do consenso absoluto?
O contexto da escolha não tem a ver com a organização mundial da agricultura nem com a indústria alimentícia. Acho que tem a ver com o novo trabalho. O trabalho pós-fabril, o telemarketing, o neo-taylorismo. Mas por hoje chega.
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