Monday, November 7, 2011

Um parto é um parto 1

Vamos às palavras.

De certa forma uma foto é muito menos pessoal que palavras. É fácil publicar fotos de um bebê fofo, menos fácil é falar sobre a experiência pessoal do parto, da maternidade. Mas isso é que é mais importante.

Meu filho nasceu de cesárea. Não era o que eu queria. Eu sabia por alto que a recuperação do parto normal é mais rápida e fácil, que no Brasil se fazem cesáreas demais - na comparação com outros países do mundo - e que no sistema privado de saúde mais ainda. E que isso se deve a interesses dos médicos ou hospitais, alheios às preocupações com a saúde das mulheres e crianças.

Havia no meu caso uma complicação considerável. Morei até o fim do sexto mês em São Paulo, depois mudei para Belo Horizonte, onde não conhecia nada nem ninguém. A gente vive nas cidades sem se dar conta de que as conhece, tão óbvio nos parece o que sabemos delas. Mas é só mudar que a gente percebe: os sinais de trânsito, os números das casas se escondem, as marcas a que estamos acostumados simplesmente não existem no mercado, a gente não entende os subentendidos, os outros não entendem o que a gente subentende, é difícil achar uma faxineira, que dirá o médico que vai fazer seu parto!

Meu marido é daqui, mas obviamente não conhecia um obstetra. Recorremos às mulheres da família e às amigas dele, mas não foi nada nada fácil encontrar alguém que jogasse limpo conosco - um bom ginecologista (e se a mulher é saudável, é difícil o cara não ser suficiente) não necessariamente é obstetra, muito menos um bom obstetra.

Um maluco me disse que o parto normal é o "parto da roça", que "sua o bigode", e que toda a campanha recente pelo parto normal era motivada por um interesse do governo, nem lembro no quê. Embora ele dissesse que respeitaria a minha opção, ficou óbvio que inventar uma desculpa fazer uma cesárea.

Uma outra médica era incrivelmente íntima. Na primeira consulta ia te beijando e abraçando, queria saber como eu e meu marido tínhamos nos conhecido, falou feito uma louca mais de uma hora, sobre tudo, menos sobre o que eu queria saber. Disse afinal que o importante era confiar no médico, que ele decidiria o que fosse melhor, e que eu tinha só que "curtir o pré-natal".

Aliás, mesmo antes da mudança, em todas as consultas relacionadas a problemas da gestação encontrei a mesma atitude: médicos e enfermeiras esperavam sempre que eu não considerasse nenhum sofrimento grande demais (o cara que tratou minha infecção urinária, por exemplo, me disse que isso não era nem doença, e que ser mãe é isso, "padecer no paraíso") e estivesse sempre encantada (a enfermeira do primeiro ultrassom ficou visivelmente chocada porque eu não chorei, mais ainda quando eu disse que era só com muita imaginação que a gente via um rosto naquelas manchas).

Cada fiasco desse me deixava apreensiva, desanimada, em dúvida sobre a possibilidade de encontrar alguém com quem eu me sentisse segura.

Finalmente encontramos um médico que disse, ok, vai ser normal se as coisas correrem bem, nós vamos conversando ao longo do processo. Mais importante, ele expressou as motivações que o fariam decidir pela cesárea e o que acontecia com o corpo no período anterior ao parto. As consultas do fim da gestação confirmaram minha primeira impressão, era um cara que jogava pela segurança, ou seja, que faria uma cesárea caso houvesse indícios de um parto normal difícil, não um entusiasta do normal, mas que falava honestamente e se dirigia a mim como um ser humano racional e dono do próprio corpo.

No fim, a gravidez chegou às 40 semanas sem que o colo do meu útero desse sinal de mudança e sem que o bebê encaixasse na pelve. O médico me explicou que a partir daí os bebês começam a "gastar suas reservas" e que, embora o parto normal vá eventualmente ocorrer, os riscos para a criança crescem. Isso, somado ao fato de que o bebê era beeem grande, fez com que ele indicasse uma cesárea. E eu concordei. Depois de tudo, teria sido terrível passar pela dor e pelo desconforto do pós-parto sem ter certeza da honestidade do médico, e da relação com ele.

Pode ser que um outro médico, um entusiasta, insistisse no parto normal. Esperasse. Colocasse o limite mais para frente. Mas o que eu entendi é: primeiro, que existe uma cultura médica, que varia entre países e mesmo entre estados, que a medicina é uma ciência ou uma técnica, mas que seu exercício privilegia certas abordagens com base numa "cultura" que é aprendida na prática e no convívio entre os praticantes. E eu não me relacionaria nem seria tratada pela técnica, mas por um médico, de acordo com sua cultura. E finalmente que, por essas duas razões, era preciso respeitar os limites do médico também, do que ele se sentisse seguro para fazer, porque forçá-lo (se isso fosse possível) a fazer algo que ele não soubesse fazer direito e não se sentisse seguro para fazer seria arriscado.

Isso não significa que eu tivesse que aceitar qualquer médico porque ele afinal é só portador de uma certa cultura. Pensando bem, a gente sempre vai navegando nessas culturas, escolhendo vertentes de acordo com nossas convicções, e a despeito de sermos leigos. Tendo encontrado alguém com que eu me sentia segura e respeitada, preferia aceitar os seus limites a continuar buscando - porque isso estava me exaurindo. A gravidez ia já pro final e eu sentia, mais que ponderava, que precisava parar de procurar e estabelecer a relação com o médico.

Assim, eu aceitei a cesárea. Tenho uma amiga que diz que se houver vida após a morte os obstetras que acham a cesárea maravilhosa viverão a eternidade em pós-parto de cesárea. Desse sentimento - uma ironia assim tem de ser a revanche para uma grande mágoa - acho que escapei. Apesar do pós-parto estar sendo realmente difícil, são só dor física e desconfortos, não a suspeita de estar sofrendo pela leviandade de outra pessoa.

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